por
Fabio Shiva
Tem
sido muito boa a experiência de escrever sobre técnicas para aprimorar a
escrita. Como diz o ditado, “a melhor maneira de aprender é ensinar”. Mas à
medida que fui investigando esse tema, senti cada vez mais a necessidade de
falar sobre algo que vai além da técnica. Trata-se de algo mais essencial e até
mais vital ao processo literário, e também infinitamente mais sutil. É algo a
que só me ocorre chamar de o caminho da
Pena.
Para
adentrar nesse terreno simbólico, é bom ter em mente o que se convencionou
chamar de o caminho da Espada. Musashi, o mais célebre
samurai japonês, teve sua vida romanceada por Eiji Yoshikawa, em uma obra
magnífica que por si só já vale por uma dúzia de cursos sobre a arte de
escrever. Pois bem. O livro “Musashi” apresenta uma ideia a princípio
desconcertante para o olhar ocidental. Essa mesma ideia é delineada com ainda
mais nitidez no mangá “Vagabond”, de Takehiko Inoue, inspirado no livro de Yoshikawa.
E o próprio Musashi escreveu um livro, “Gorin No Sho” (O Livro dos Cinco Anéis),
onde essa ideia surge como uma filosofia de vida: é a noção de que a arte da
esgrima é sobretudo uma disciplina espiritual.
Vencer
os adversários em duelo, ser hábil em cortar e perfurar corpos com a espada,
tornar-se um exímio ceifador de vidas, tudo isso pode ser encarado também como
etapas de um iniciado em sua jornada de evolução espiritual. E é isso, em
resumo, o que costuma ser chamado de caminho da Espada.
Outras
boas referências para esse rico universo semântico são os filmes de Akira Kurosawa,
em especial “Ran” (adaptação do “Rei Lear” de Shakespeare para o Japão feudal)
e “Os Sete Samurais”.
Quando
li o livro de Eiji Yoshikawa pela primeira vez, fiquei tão entusiasmado que
escrevi uma letra de música sobre o tema:
O
CAMINHO DA ESPADA*
No
caminho de muitas andanças
Sob
um sol de beleza insondável
Quem
já viu incontáveis matanças
Está
preparado pro inevitável
O
terrível desígnio da sorte
Encadeando
a corrente invisível
Quem
domina aos outros é forte
Quem
domina a si mesmo é o Invencível
No
que consiste a arte da esgrima?
Ter
em si mesmo o Adversário?
No
verdadeiro Caminho
O
uso da Espada não é Necessário
Aquele
que vive pela Espada
Morrerá
por Ela
Um
dos maiores ganhos que tive nessa época foi perceber o quanto o modelo proposto
pelo caminho da Espada poderia somar em minha própria vida. E hoje sinto que
qualquer caminho pode ser o caminho da Espada: se você segue o chamado de seu
coração para se dedicar a um trabalho, seja ele qual for, e se entrega a esse
trabalho com todo o seu ser, inevitavelmente torna acessível um aprendizado e
uma visão mais ampla do mundo e de si mesmo que bem podem ser descritos como
uma “evolução espiritual”.
O
caminho da Pena, portanto, é aquele que leva a vivenciar, por meio da
literatura, uma compreensão mais alta de si e do mundo. E uma característica
muito própria desse caminhar é ser uma via de mão dupla, que pode ser trilhada
em dois sentidos.
A
primeira via é a da leitura. Sabe aquele livro que mexeu com suas estruturas e
ajudou você a enxergar novos horizontes? Lembra daquele personagem apaixonante
no qual você se inspirou (consciente ou inconscientemente) para lidar com essa
ou aquela situação em sua vida? Quando vivenciamos momentos assim, estamos
trilhando o caminho da Pena pela via da leitura.
A
outra via é a da escrita. Não segue no sentido oposto ao da leitura, muito pelo
contrário. Está mais para uma via superposta, ou então uma que passa por dentro
da outra, por camadas mais profundas. A via da escrita poderia ter como lema o
velho ditado: “vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”. Todo escritor
começa como um leitor que se apaixona por essa forma de expressão escrita e
então decide aprender a gerar no mundo, com seus escritos, o mesmo
maravilhamento que sentiu ao ler o que outros escreveram.
Aprender
como se conta uma boa história não é pouca coisa. Mas na perspectiva do caminho
da Pena representa somente os passos iniciais de uma jornada bem mais longa.
Para
o grande samurai, conhecer a técnica da esgrima não era suficiente. Era preciso
provar a sua força em inúmeros duelos reais. Trilhar o caminho da Espada
significava estar sempre pronto para matar ou morrer. Nesse ponto a Espada é
radicalmente prática, no sentido de que toda filosofia e toda religião, e até
mesmo toda arte, são tentativas de lidar com a questão da morte.
De
modo semelhante, o escritor deve estar imbuído do mesmo espírito, se almeja tocar
o eterno com suas mãos de mortal. E assim mergulhar no mais íntimo de si mesmo,
até vislumbrar lá bem fundo, no âmago das sombras, algum lampejo intenso da
alma do mundo. E então travar o árduo embate das palavras, para expressar na
linguagem dos homens essa ideia universal, que brilha lá dentro de seu coração.
Esse
é o chamado da literatura em sua conotação mais alta: é assim o caminho da
Pena.