Recortar é se incomodar. É um modo de sublinhar, como a dar
relevância ou interrupção de sequência, caso em que se instaura um outro
cenário a ser explorado. Como relevância é uma maior proximidade do olhar, um
desejo de penetração mais apurado, um apelo significativo à memória como
fixação, um alerta contra o esquecimento e um compromisso com o depois, sinal
de que, se não for assim, algo se perderá.
Há aí uma tensão contra o tempo que apaga, uma competição na
agenda da memória e uma requisição com aura de inadiável, que faz com que a
mobilização suba o limiar usual da atenção, para que o destaque brilhe de forma
diferencial.
É essa diferença a própria razão do recorte, pois viu-se ali uma
diferença, um a mais ou a menos, uma equação algébrica de contornos atraentes
que ao capturar o olhar abriu a conta, e alguma coisa indiscernível começou
então a ser contada.
O destaque então, como o que se sublinha, demanda talvez o sublime,
a sublimação, ou nada disso e apenas uma provocação contra miopia linear, caso
em que estabelece um contraste para maior vivacidade, já que a leitura é um
jogo contínuo de contrastes e promessas inacabadas.
Já como interrupção de sequência, é um gesto mais ousado, pois
decide-se por uma quebra com indicação de novo endereço, uma nova prosa, um
reverso qualquer onde instaura-se um desacordo, de preferência fértil, e ao
mesmo tempo compromete aquele que decide com sua decisão.
É assim que de um texto nasce outro, outros, multiplicidades
criativas (de preferência), onde a abertura é forçada nem tanto pelo formato ou
pela intenção de contracenar do autor, mas pelas sublinhas presentes no texto,
aqueles lugares nem tão oficializados pela escrita, mas que têm o poder de
veicular sulcos ou entranhas, tipo ruelas nem sempre significativas, mas que, de
repente, se tornam cenário pra quem lê.
Essa magia deliciosa de oferecer endereços não catalogados é a
sedução, o fascínio que a escrita exerce sobre o autor, já que, nesse caso ou
acaso, nem ele o autor é autor e nem o leitor pode ser o mesmo, já que, alterado
pela captura, tem que viajar, se inserindo também como autor de uma viagem que
acabou de sair do forno.
Delineia-se um tipo de vinculação por afinidades simpáticas ou
antipáticas, onde a ressonância se amplia, como um elo que liga mentes e
corações num campo que tem todo um cunho compartilhado, uma força de afetação
coletiva, mas que ao mesmo tempo é singular, única.
Um tipo de intercessão onde a história do humano se reconhece em
seus signos e contornos, o que nos permite pensar que para cada escrita haverá
um leitor, mesmo que seja pra vaiar, nos dando o lugar do outro no imaginário,
um outro virtual que fará viver a escrita, mas que ao mesmo tempo devolverá
alguma indicação singular de sua leitura. Obviamente podemos pensar que, quando
um leitor lê, toda a nação lê junto, tanto no que a formação do cidadão permite
alcançar quanto no que deixa escapar, um livro subjacente que revela suas
passagens e estéticas culturais.
Mas o ato de recortar é antes de tudo um apelo singular, já que
alinhou o interesse, atiçou a demanda, marcando então a entrada num mundo
ordenado e inédito para o autor; da mesma forma, faz com que o leitor se
atrite com o autor, seja para exaltá-lo na conta de um dito valioso ou para no
desacordo instaurar uma nova série que poderá ou não ser explicitada.
Se a leitura é da ordem primária do solilóquio, onde o leitor é seu
próprio leitor, onde quem fala é também quem escuta, então a beleza disso é que
aí não há diálogo, já que é um espaço privativo, longe das regras da civilidade
ou obrigações com suas regras de bem viver.
Não, o lugar é antropofágico, pois exige certa truculência, certo
embate, onde a digestão precisa vender caro o que vai ser engolido, afinal, todo
texto é invasor, quer captura, mesmo que negue isso, nada aqui é democrático ou, por representação, igualitário. Nesse sentido, escrever é um além ou aquém de
sistemas de representação ou contratos coletivos, já que o sequestro não
suporta combinações prévias, não é um teatro previsível, mas uma gana que não
está interessada no que pode ser óbvio, pelo contrário, é a criação ainda inexistente que habitará o interesse.
Eis um dito de Deleuze, o filósofo francês: “Escreve-se para dar a
vida, para libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de
fuga. Para isso, é preciso que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas
um desequilíbrio, sempre heterogêneo”.
Observação que indica que escrever é romper com a civilidade
homogeneizante onde ela se traduz como acordo que deixa a vida de fora, e nesse
sentido escrever é uma insubmissão à coletividade prévia, ou, se quiserem, é um
desejo de inventar uma outra humanidade a partir do texto, ficção inconfessada posta
na conta da megalomania. Mas cabe a pergunta: quem pode escrever se não
suportar sua megalomania? Não é justamente a megalomania o primeiro recorte a
ser feito, não é ela que sublinha uma pretensão?
Ao escrever o autor se eleva enquanto alter ego de sua repressão,
é a liberdade de penetrar o outro sem ter que pagar pelo crime, entra-se
sutilmente como quem não quer nada querendo tudo, supostamente uma invasão
consentida, cúmplice, senha inocente para um coito perigoso de apropriação.
Ao recortar já se estabelece o ato como alteridade, como diferença,
um viés qualquer, onde surge uma outra possibilidade, uma nova alternativa não
pensada até então, e de forma bela ao se diferenciar do autor com a primazia de
seu texto, o leitor se diferencia de si mesmo, fazendo um contraponto que lhe
exige reflexão e dedicação, pois se for para vingar é preciso fazer durar.
Encontra-se então uma linguagem para se dizer o que “ estava na
sombra das palavras” diz novamente Deleuze,e que acréscimo poderia ser mais
interessante para quem escreve, se não for sua oferta de dar linguagem aos que
precisam?
Observando-se que dar linguagem só é possível ao acaso não por
intenção prévia, oferece-se e espera-se, pois os elos virão dos encontros
potencialmente desejosos de acontecer, o que faz do autor um tipo de parteira
desinteressada em precipitações, ao mesmo tempo que torce para que o filho
nasça.
O tempo nesse caso é que recorta a espacialidade, pois é um tempo
do desejo não cronologizado, tempo do acontecimento não do fato, como diz nosso
filósofo anterior, pois o acontecimento recusa o fato, lhe ultrapassando é algo
por ser dizer e não o dito no fechamento do fato.
É assim que o acontecimento é um recorte no fato, não como um
sublinhar, mas como ruptura que destaca, que exalta, que recusa o bom senso
doméstico sempre pronto a apaziguar, ou ainda “ entre uma principal e uma
subordinada deve haver uma tensão, uma espécie de zigue-zague, mesmo e
sobretudo quando a frase tem um aspecto perfeitamente correto, afirma o
filósofo.
E veja-se aqui o quanto se faz necessário desconfiar da ordem,
pois não se escreve para corroborar simplesmente, o que se busca é a borda,a
franja, que na tensão do limiar produz atrito, fazendo com que palavras ou frases
imponham seu destaque, seu recorte, pois indicam o que falta, justo o que faz a
diferença pura, não por comparação.
E se quisermos um pouco mais, convém destacar que o recorte é uma
traição à percepção, pois eleva a tensão usual das comodidades e exige mais do
leitor, exige que se apresente para dizer do pathos, sua afecção, que lhe
obriga a buscar, a sair do solilóquio privativo para uma exposição que lhe
denuncia.
Nesse sentido a Arte como a Filosofia não é uma discussão, uma
doxa opinativa, mas um tipo de afirmação onde o trabalho é transformar o pathos
em estilo, a dor em acontecimento, a alegria em potência de vida,a
partenogênese socrática só que sem maiêutica, mas pelo incômodo da surpresa, a
posição do surpreendido, que uma vez denunciado não pode mais continuar o mesmo.
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